terça-feira, 12 de abril de 2011

Raid Atlético de Vale Barris

 O ser humano é uma criatura complexa, cheia de engenhos, aptidões e capacidades muitas vezes ocultas ou dominadas por uma mente absorvida nos limites do corpo que ocupa. Mas por vezes, a mente supera o corpo e quando isso acontece a criatura complexa transcende-se e ganha uma nova vida carregada de adrenalina e emoções que superam todos os seus limites.

Saí da estrada, por momentos esqueci os muitos quilómetros em estradões escuros marcados a branco e parti. Parti à aventura. Parti porque alguém me desafiou a partir. Parti simplesmente porque decidi mudar um pouco. Sai do Alcatrão e abracei pela primeira vez uma prova de trilhos. O Raid Atlético Vale Barris serviu assim para apadrinhar uma estreia à muito prometida mas muitas vezes adiada.

Os Tandur lá estiveram os três para percorrer aquelas serras, os dois “Veteranos” (António Almeida e Vítor Veloso) e o novato nestas andanças (eu). Tinham-me dito que esta prova era ideal para me iniciar nos trilhos, que no ano anterior tinha sido “fácil”., e mesmo após alguma pesquisa na blogosfera pensei que assim seria. Mas cedo descobri que esta edição não iria ser assim, primeiro pelo excelente briefing inicial e depois pela “estágio” efectuado na noite anterior no SAP com o diagnóstico de uma amigdalite e uma otite. Partida feita às 9H e logo aos 600metros, toca a subir. Ao fim do primeiro km já tinha feito 200metros a andar porque era impossível correr naqueles trilhos íngremes e de pedras soltas que levariam aos moinhos. Ao chegar ao cimo, deslumbrei-me pela primeira vez. A vista dali era maravilhosa, tal e qual como uma pintura, delineada pelo céu azul no horizonte e por aqueles verdes campos e serras a enquadrar o imponente e solitário castelo de Palmela. Aproveitei o momento, procurando com os olhos absorver o máximo que aquela paisagem me dava em troca de cada metro percorrido. Uma descida, uma curva, dois ciclistas em sentido contrário e toca a curvar no que parecia ser o voltar pelo mesmo trajecto. Mas cedo me enganei. Aos 10km, o Vítor Veloso anunciava o ritmo, 52min. Demasiado rápido? Para mim, claro que sim!

Mais um verde campo, e uma dura subida de estradão, faziam anteceder uma descida que tardava em chegar. Íamos nesta altura com uma companhia de Honra, pois tínhamos mesmo à nossa frente o Carlos Fonseca. Chegou a descida, curta mas inclinada, muito inclinada. A surpresa era tanta que nem saboreamos a descida alucinante com saltos por cima de buracos, pedras soltas, carreiros de água, enfim tudo o que aparecia, nós saltávamos sem olhar. Também foi sem olhar, sem me aperceber bem, que quando dei conta, já tudo subia e descia novamente por entre arbustos, árvores, arvoredos, pedras, buracos, o que fosse. A malta saltava em busca da marca no chão e da fita na árvore, parecíamos, lebres Sado, penso que é este o termo. Pelo meio ficou a foto do amigo Joaquim que apanhou a malta ainda a sorrir sem saber o que estava para vir. Sem me dar conta, começo a perder velocidade, começava a ser difícil acompanhar o Vítor que ia ganhando metros e gritando para que não ficasse para trás. Não estava bem, deixei temporariamente de ver a estrada à minha frente. Num km tudo mudou. A alegria e a vontade de percorrer aqueles trilhos, pareciam ter morrido no meu corpo dorido. Avisei o Vítor para continuar. Vou desistir! Não dá, para continuar. Incrédulo! Olhou para mim, mas percebeu que o seu caminho era seguir.

Estava agora no controlo dos 16km com 1h35m. Parado! Aguardava uma cara conhecida. Peguei no telemóvel e liguei para casa. A voz doce da minha mulher parecia agora sobressaltada. Que aconteceu, estás……. Sem acabar a frase ouviu-me apenas dizer. - Vou Desistir!

Ouvi, um raspanete e duas palavras de força. Acreditem era o que precisava naquele altura para me obrigar a reagir. Vejo o António Almeida e penso, que sem dinheiro para o táxi e no meio da Serra, só um Tandur me pode dar boleia. Surpreso, perguntou se estava bem. Assertivamente abanei a cabeça e colei-me no seu encalço. 200metros, e aquele ritmo também não é para mim. Deixo ir o Almeida e fico a matutar na loucura que é estar todo roto no meio da serra numa prova de auto-suficiência em que estava curiosamente, a meio. Parei para andar um pouco, comer mais qualquer coisa e decidir o que iria fazer. O telemóvel tocou. Pensei à pouco o raspanete soube bem mas agora, espero que seja “apenas” um beijo de boa sorte. Nem uma coisa nem outra, do outro lado a voz do meu filho ilumina-me a alma e rejubila-me a mente. –“ Força, Pai! Tu consegues é só correr. Força!” As palavras do meu filho estremeceram dentro de mim. Sem pensar em mais nada comecei a correr. Sabia que o pior estava para vir, mas nunca pensei que fosse assim. Levei 17min para fazer o km seguinte. Sem conseguir correr, naqueles trilhos loucos. Não era o único nesta situação pois o terreno não deixava mesmo correr, com trilhos curtos, estreitos, pedras para escalar, arbustos para desviar, ramos para saltar. Uma tortura que compensou com a chegada ao posto de vigia e aquela paisagem magnífica, de Setúbal, Tróia, o Sado, a Arrábida no seu melhor esplendor. Tinha valido a pena sofrer para ali chegar, foi pena só nos terem dado um fio de nylon de prenda de presença e uma palmadinha nas costas a dizer agora é para entregar isso na meta.

A descida, vertiginosa, alucinante, pelo meio de árvores, agarrados a cordas, a evitar escorregar e cair, deu-me a adrenalina que estava a precisar. Que loucura, aquela velocidade, desgovernada, desordeira, arrebatadora. Magnifica! Sentia-me agora rejuvenescido. Por sorte, vejo o António Almeida não muito longe. Inexperiência. Pois em trilhos não muito longe significa mais uns 3 km só para o apanhar. Depois de mais umas descidas a grande velocidade a roçar a insanidade e de umas subidas a passo de caracol, a minha audácia tinha sido recompensada e apanhava o amigo António Almeida. A prova continuava dura, mas agora éramos dois Tandur lado a lado, e quando isso acontece é sinal que seremos bem-sucedidos. Com essa força, lá continuamos a subir e a descer. A lutar para avançar km a km naquela incansável e imponente serra cheia de desafios avassaladores, envolvidos e escondidos por uma inigualável beleza. A 500 metros do Fim, lá estava novamente o amigo Adelino de máquina em punho a tirar o retrato à malta que ainda sorridente ali ia passando.

Eu e o António fizemos lado a lado aqueles duríssimos últimos 6 km. Fomos batedores quando o tivemos de ser, fomos fortes naquelas intermináveis e íngremes, sempre íngremes, subidas mas acima de tudo fomos unidos para chegar à meta com 3h42m. Acabava a minha primeira prova de trilhos. Depois de tamanha aventura cheia de sofrimento e força de sacrifício, mas com muito prazer e fantásticas paisagens, era tempo do reconfortante e retemperador, banho gélido e juntar ao repasto todos os amigos mais próximos que ali estavam presentes, O Mário Lima, o Joaquim Adelino e os meus dois grandes companheiros Tandur António e Vítor que apadrinharam a estreia, sem eles de certeza que não tinha sido capaz. Sem as palavras do meu filho e da minha mulher (faltou a minha pequenina Matilde), teria certamente desistido, foram deles as palavras certas de quem melhor me conhece, e só eles sabem como lhes estou eternamente grato por isso.

5 comentários:

  1. Companheiro TANDUR Fidalgo
    pensámos mesmo que era uma boa prova para a sua estreia, sabiamos que ia ser mais dura mas tanto também não.
    Estás pois de parabéns pela conquista, para uma estreia e com as limitações impostas pelo teu estado de saúde estveste mesmo muito bem.
    Os trilhos são duros mas passadsa umas horas já estamos a pensar nos próximos.
    Uma honra e um prazer ter os TANDUR a 100% no Vale de Barris.
    Grande abraço companheiro, o que não nos mata torna-nos mais fortes.
    TANDUR Almeida.

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  2. Filipe

    Belo relato de uma prova que entre o desistir e o continuar bastou a voz de uma criança.

    Se foi 'arrazador' subir à serra aqueles últimos km's foram de dureza que só quem lá esteve é que sabe o quanto o foi.

    Filipe,penso que depois da prova o primeiro pensamento que nos vem à cabeça é do que nunca mais me meto noutra. Passados uns dias refletimos e verificamos que isto é diferente de tudo o que fizemos em termos de provas até então. E lá nos vemos a inscrever para mais uma 'loucura'. Não ganhamos juízo!

    ;)

    Parabéns pela tua estreia, estiveste a um passo de desistir, mas tu nunca o farás pois um DURO é sempre DURO e tu já o és!

    Abraços.

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  3. Filipe,
    Fiquei feliz por teres terminado a tua primeira experiencia fora de alcatrão, parabéns.
    Se fosse igual da edição anterior com certeza seria muita mais fácil, mas para os outros não teria sua “graça”, apesar da dureza adorei a prova com tu!
    Boa recuperação, espero que estejas pronta para outra aventura, Trail.
    Grande abraço

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  4. Filipe, qualquer coração fraco vai abaixo ao ler uma crónica tão emocionante como esta,o que me vale é que eu tenho a ajuda do Pacemaker para enfrentar todos os choques desta grandeza.
    Foi o 1º Trail e por certo vai ficar gravado na tua memória, ainda mais quando tinhas atrás de ti a bandeira do orgulho representada pela tua família que não te faltou com o apoio quando dele necessitaste. Faz-me lembrar a minha Susana quando eu andava desesperado a subir a Drave na Serra da Freita e o telefone tocou, a emoção invade-nos e parece que rejuvenescemos.
    Quando voltar quero estar aí para te acompanhar em novas aventuras, pelo menos no princípio e depois durante as almoçaradas.
    Um abraço.

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  5. Olá Filipe;

    Pois esta tua aventura, teve um grande valor familiar. Entre um "raspanete" e um fortificante telefonema do teu filho, valeu para teres toda força necessária a terminar esta prova.

    E agora venham lá outros raid's e muitos e muitos confortantes momentos familiares.

    Um abração amigo
    do Xavier

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